sábado, 25 de abril de 2020

17 de agosto



Querida tia,

nascemos no mesmo dia com cinquenta e cinco anos de diferença. Tu Adelaide, eu Susana. "Susaninha" como sempre me chamavas. Não te vou escrever com palavras caras porque nunca foste rica. E não vou filtrar aquilo que escrevo porque também tu dizias o que pensavas sem papas na língua.
Não havia ninguém que não notasse a tua presença onde quer que estivesses. Uma mulher alta, bonita e cujas gargalhadas e cantigas enchiam uma sala.
É com esta Adelaide que eu quero ficar.
Quero ficar com a Adelaide que sabia viver a vida. Que não ia em cantigas de ninguém. Que sofria só para ela e aos outros só sabia dar sorrisos.
Quero ficar com a Adelaide que quando saía de casa punha os estores para baixo mas a janela aberta e a televisão ligada em altos berros para enganar os gatunos de ocasião.
Quero ficar com a Adelaide que sabia brincar ao Carnaval e fazer as delícias das crianças no Natal como me conta a minha mãe.
Quero ficar com a Adelaide que tinha sempre a porta aberta para mim. Que me dizia que a porta estava só fechada no trinco e que na sala tinha uma fotografia da minha mãe ainda menina.
Quero ficar com a Adelaide cuja casa era sempre perfumada com canções de fado, de Amália que admiravas tanto.
Quero ficar com a Adelaide que nunca parava em casa. A Póvoa era muito pequena para ti. Só em Lisboa te sentias bem. A cidade que conhecia o batimento rápido do teu coração e o ritmo com que gostavas de viver a vida.
Quero ficar com a Adelaide que tanto me fazia rir a mim e aos seus netos por pensar que sabia o tema da conversa e acabava por disparar uma frase totalmente descabida sem querer.
Quero ficar com a Adelaide que se vestia de todas as cores. Aquela que não deixava a dor entrar no guarda-fato e usava batom vermelho para sublinhar a garra com que vivia todos os dias.
Quero ficar com a Adelaide que se atrevia a ser feliz e que, às vezes, pouco era compreendida por aqueles que a rodeavam.
Oh Adelaide! Mas tu sabias. Tu sabias que a vida era curta.
E eu quero ficar contigo.
Não quero ficar com a tia que se foi embora hoje. Não quero ficar com a mãe, a irmã ou avó que partiu.
Querida tia, vais ficar comigo.

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