quinta-feira, 26 de setembro de 2013

A relojoaria

Numa cidade lá para o norte de um país frio existe uma relojoaria. Uma relojoaria antiga onde não se consegue ver sequer a cor do papel de parede dada a quantidade de relógios que tem expostos.
O dono da relojoaria é um senhor baixinho, pálido e curvado pelo tempo. Os poucos cabelos que tem são brancos. Mas as suas mãos saltam à vista. São mãos grandes e têm a pele lisa. Parece que o tempo não passou por elas. E a falar o senhor usa as mãos, o que nos faz olhar para elas e ficar a pensar como é que umas mãos tão grandes conseguem ser tão minuciosas a consertar relógios.
As pessoas da cidade passam em frente à porta da relojoaria com uma velocidade tal que parece sempre que está uma ventania no dia mais sereno do ano. Os relógios que estão expostos na parede veem os primeiros raios de sol a aparecer e a escuridão da noite a impor-se num ciclo sem fim. Quando algum cliente abre a porta da relojoaria nunca é com delicadeza e de um safanão os relógios acordam e os seus ponteiros começam a andar. E quando vem acompanhado irrompe na relojoaria ainda a falar muito alto e só para quando se apercebe que o silêncio habita naquele espaço. É que dentro da relojoaria é como se o tempo parasse. E aí o cliente para e começa a olhar em redor. Procura um móvel que se assemelhe a um balcão mas não encontra e nem se dá conta do tic-tac que se ouve pelos cantos da casa. É que os seus pensamentos corriqueiros gritam e não o deixam ouvir. Lá ao fundo, no canto mais escuro está uma luz forte que aponta para umas mãos grandes. Estas, por sua vez, parece que esmagam o que está entre elas mas, na verdade trata-se apenas da exagerada delicadeza com que o relojoeiro segura o relógio que está a arranjar. O cliente interpela-o e em resposta ouve uma voz grossa e rouca de quem já está há muito tempo sem falar. Dirige-se com rapidez na direção da voz e, da mesma forma rápida com que entrou, sai. Passado um tempo, volta à relojoaria para receber o relógio já consertado e em troca entrega uns círculos de metal e uns papéis retangulares que dizem que têm muito valor pois há pessoas que matam por eles. E voltam a fechar a porta da relojoaria e a parar o tempo.
De vez em quando, alguém entra com a intenção de levar um dos relógios que estão pendurados. É das poucas vezes em que eles se sentem observados. O dono da relojoaria raramente olha para eles. Já os dá como certos. E os restantes clientes, uma vez que não querem perder tempo, evitam olhar para eles.
Geralmente é alguém de roupa bem engomada e abastado de barriga que vem ver os relógios com a intenção de comprar um para a casa de férias que tem uma decoração rústica e fica mesmo bem na cozinha. Mas estes clientes olham apenas para o contorno dos relógios, para a numeração romana das horas, para a cor dos ponteiros e para o valor monetário. Esse outro valor que os relógios têm, aquele valor que ninguém consegue comprar, não é apreciado pelos outros. Nem pelos clientes mais bem-dispostos, nem por aqueles mais rabugentos e nem pelo próprio relojoeiro.
Lá naquela cidade distante, onde existe a relojoaria, há apenas uns olhos que conseguem atribuir aos relógios o valor que lhes compete. São uns olhos pequenos e curiosos que vivem no corpo de alguém também pequeno e curioso. Alguém que fica todos os dias à mesma hora com o nariz colado ao vidro da relojoaria enquanto a sua mãe compra o pão na padaria ao lado. Apenas essa pessoa consegue seguir os ponteiros dos relógios como se de engrenagens de máquinas fabris se tratassem. Os seus olhos fixam-se sempre nos ponteiros do relógio maior e quando o ponteiro dos segundos dá uma volta e aponta ao mesmo tempo para outro ponteiro dos segundos do relógio ao lado, os olhos deste ser dão início a um jogo de perseguição do tempo. E o ser ali fica a aperceber-se da rapidez com que o tempo passa. O cheiro do pão que a mãe acaba de comprar viaja pelo ar até ao seu nariz e fica guardado na sua memória para sempre, juntamente com o sabor a laranja do rebuçado que a senhoria da mãe lhe dera há poucos minutos por ter entregado uma mola da roupa que caíra do estendal. Na sua memória ficará também a voz quente e bem temperada que sai do rádio do carro que está estacionado no passeio. E é aí a única vez que este ser tem o poder de parar o tempo e prender a eternidade numa lágrima de quem não quer ir já embora para casa.

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