Escrevo
porque sei que o que escrevo ninguém consegue ler. Aquilo que penso e aquilo
escrevo é diferente daquilo que é lido e que é pensado por outrem. Até mesmo eu,
depois de escrever o que penso não me consigo lembrar do que estava a pensar
quando escrevi. A pessoa que escreve o texto nunca é a mesma que o lê. Muda o
tempo, muda o espaço, muda o leitor e, por fim, muda o texto. Às vezes não me
reconheço nas minhas próprias letras.
Isto
deu, dá e sempre dará azo a novos amores e a novos ódios. Pensamos nós que quem
gosta daquilo que escrevemos é porque gosta da forma como pensamos e está em
concordância com os nossos sentimentos. Porém, na verdade, quem gosta daquilo
que escrevemos, gosta apenas da forma como interpreta as nossas palavras e as
consegue encaixar na sua vida. Quem diz que gosta daquilo que lê é porque
encontra naquelas letras o seu nome. Da mesma forma, quem não encontra empatia
com as palavras que lê pode-lhes mesmo ganhar ódio. E esse ódio gera guerra. A
guerra é a ferida que é causada pela leitura de um texto que não se gosta e é
partilhada com outros que têm as mesmas feridas.
Um
mesmo texto tem tantas interpretações quanto o número de pessoas que o lê. E,
sendo assim, há muitos mais textos para serem lidos do que aqueles que já estão
escritos. Por um lado, se há muitos outros textos que eu gostaria de ler, por
outro lado, há muitos outros textos que eu preferia não descodificar. Então
porque ensinamos nós os outros a ler e a escrever? Será apenas uma questão
prática, de acesso ao registo escrito? Serão o ler e o escrever direitos de um
cidadão? E deveres? Um leitor e um escritor têm direitos mas também têm deveres
para com um texto. Um leitor tem o direito de interpretar um texto das formas
que quiser. Um escritor tem o direito de escrever um texto sob as formas que
quiser. Todavia, um leitor tem o dever de ler na íntegra um texto antes de
saltar linhas ou esboçar entrelinhas. E um escritor tem o dever de perante um
texto que escreve fazer justiça aos seus pensamentos usando as palavras certas
em cada momento. Além disso, o escritor não se pode esquecer que os seus
pensamentos ficarão ao acesso de todos. Pelo contrário, o leitor tem a
liberdade de poder guardar para si as suas interpretações e apenas as revela se
o entender. Não pretendo de alguma forma desprezar o ser-leitor, caso contrário
estaria a desprezar-me a mim própria. Eu sou a eterna leitora do meu ser-escritor.
Quero apenas distinguir estes dois atos para tudo ficar bem arrumado na minha
cabeça. Tu que estás a escrever não és quem estás a ler.
Sempre
escrevi, escrevo e continuarei a escrever. Ao fazê-lo, uso o papel e o lápis para
desenhar o que penso. Uso letras em vez de traços como os pintores. Através das
letras eu mostro as cores daquilo que penso. Uso as palavras paixão, sangue e
arrebatador para colorir o amor de vermelho. Uso as palavras sombra, frio e
mistério para colorir a noite de preto. Uso letras em vez de colheres-de-pau
como os cozinheiros. Através das letras eu mostro os cheiros daquilo que penso.
Uso as palavras rosa, brisa e silvestre para perfumar um jardim. Uso as
palavras quente, textura e suave para degustar um bom vinho.
Não
há dúvida que as palavras são o meu veículo de condução preferido para visitar
os meus pensamentos e por lá ficar a passear. Com as palavras em vagueio pelas
maiores avenidas das mais modernas cidades e pelas escadinhas de xisto das
ruelas escondidas das aldeias mais longínquas. Às vezes vou a pedalar
devagarinho a apreciar o sol que roça no meu rosto e outras vezes escrevo de
forma pouco cuidada e desenfreada como se estivesse a mudar de metro muitas
vezes de seguida. Será que algum dia chegarei ao fim da viagem? Onde para o meu
destino?
Um
texto não é mais do que uma viagem. Quando se viaja sente-se tudo de uma forma
que nunca mais se sentirá igual. Muda o tempo, muda o espaço, muda a companhia que
vai ao nosso lado, muda o viajante que há em nós e, por fim, muda o texto. É
por isso que às vezes não me reconheço nas minhas próprias letras.
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